sábado, 9 de abril de 2016

O TABOR E A PLANÍCIE


Amélia Rodrigues

Com a força da sua realidade poderia ser considerado um díptico: as bênçãos de Deus no monte e os conflitos do homem em toda a pujança de suas cores na planície.

Desciam Jesus, Pedro, Tiago e João das culminâncias do Tabor, onde comungaram com as excelências de Deus, ao encontro das baixadas espirituais das criaturas.

Há pouco, resplandecente, o Mestre estivera envolto por uma esfera de poderosa luz e dialogara com os venerandos antepassados do povo: Moisés e Elias.

As emoções ainda não se aquietaram na horizontalidade do habitual, e a curva descendente das dores tomava forma chocante no terra a terra das contingências humanas.

No alto, a visão da vida verdadeira; ao sopé, as angústias junto aos sofrimentos.

*

- “Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai dele e não entre mais nele” – exortou Jesus com firmeza na voz, na qual a piedade se misturava à energia.

Não houve debate. Tudo simples. A cena breve culminou no declínio do jovem que ficara prostrado como morto, banhado por álgido suor, desfigurado.

O Mestre, comovido, curvou-se, tocou a fronte do ex-obsidiado e o levantou com gesto cativante.

Era quase um menino...

Sofria desde a mais tenra idade sob o jugo violento do impiedoso algoz desencarnado. As raízes do ódio nefando se perdiam nas sombras do passado, quando foram comensais da mesa farta da loucura e se enredaram em odienta cena de sangue... Agora a lei soberana, que jungia o criminoso não punido à justiça desrespeitada, manifestava-se sobranceira.

O parasito espiritual se imanara ao sofredor e reproduzia nele os esgares epilépticos em que se consumia, vítima de si mesmo, escravo do ódio. Na volúpia da vingança, atirava-o de encontro ao solo, ateava-lhe fogo às vestes, tentava afoga-lo, subjugava-o.

As esperanças da família se apagavam na lâmpada sem lume das tentativas de cura, impossível até aquele momento.

Seu pai ouvira falar do Rabi e o trouxera, na expectativa duvidosa de ver o filho recuperado, perdido como se encontrava no caminho do aniquilamento inexorável.

*

- Transcorreram oito dias após a “confissão de Pedro”, o Mestre tomou consigo Pedro, Tiago e João, e levou-os sozinhos, e à parte, para um alto monte.

Agosto, em plenitude, derrama sua taça de luz e calor sobre a terra. As papoulas e as margaridas jazem crestadas em hastes vencidas pela canícula. O céu muito azul e transparente concede visão infinita em todas as direções.

À medida que o Tabor vai sendo vencido, os painéis se desenrolam: embaixo os campos de trigo ceifado, a mancha pardacento-prateada do Jordão, na configuração de imenso alaúde entre sebes; para as bandas do oriente erguem-se altaneiros os montes Galaad e ao poente cintilam as águas do Mediterrâneo, como imenso espelho refletindo através da garganta natural entre o Monte Carmelo e os contrafortes altanados do Líbano; ao norte o Genesaré salpicado de velas coloridas e orlado por Tiberíades, Magdala, Cafarnaum, Betsaida, as cidades tão encantadoramente derramadas dos pequenos cerros na direção da praias, vestidas de palmeiras verdejantes...

Do acúmen a visão não se detém. De forma arredondada, a plataforma batida pelos ventos, às vezes coroada de zimbros, é a culminância dos 562 metros de altitude rochosa, sem vegetação, com destaque na imensa e formosa Galileia.

A noite ainda demora algumas horas para estender o seu manto imenso sob o céu. Os meses de agosto são de longos dias. O calor asfixia e requeima a rala vegetação.

A jornada é longa, na conquista do monte: mais de quatro horas de marcha lenta e cansativa, embora a beleza da paisagem deslumbrante em derredor.

Atingindo o acume, o Mestre se põe em oração. Os discípulos, suarentos e cansados, adormecem à sombra dos arbustos escassos.

Um grande silêncio envolve tudo e todos. O mormaço quase asfixia...

A noite vence a natureza e o Mestre ora.

A madrugada alcança o Rabi em oração. Os companheiros dormem. Vozes percutem na monotonia. Os discípulos despertam, assustados e são dominados pela visão sublime da transfiguração do Mestre, com as vestes incendidas, dialogando com Moisés e Elias. As palavras vibram no ar; mas não são palavras como as que se ouvem comumente...

Logo após, diluída a visão, Simão se acerca do Rabi e exclama:

- Mestre, bom é que estejamos aqui, e façamos três cabanas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.

O Mestre fita-o compadecido.

Uma nuvem surge misteriosa e uma voz, então, exclama:

- Este é o meu filho amado; a Ele ouvi!

Os discípulos ainda não refeitos são tomados de pavor.

A grandiosa revelação fora feita.

Jesus estivera em toda a sua glória e eles foram testemunhas silenciosas e emocionadas do acontecimento incomparável.

Os Céus foram cindidos e os discípulos tiveram o “conhecimento do Divino”.

Pedro se reportará mais tarde a essa metamorfose do Mestre, testemunho insofismável em que fundamenta sua fé.

O Rabi, no entanto, exige-lhes silêncio.

A verdade tem que ser dosada para o entendimento da argila humana.

Mais tarde João, ao escrever os “ditos do Senhor”, iniciará a sua narrativa evocando, certamente, a cena inesquecível: “Nele estava a vida, e a vida era luz dos homens; a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”.

*

- Descemos! – alvitra o Mestre.

- Não poderíamos aqui demorar-nos? – indaga Simão.

- É necessário descer – retruca Jesus. – Busquemos os que não dispõe de forças para subir. Os homens necessitam de nós. A nossa é a glória deles. Para eles sejam nossas alegrias e para nós as suas dores. Depois da comunhão com os Céus, a convivência entre os que demoram na Terra. O paraíso seria para nós estranho presídio sem aqueles que, no ergástulo das aflições, anseiam pelo país da liberdade. Desçamos. Os homens, para quem eu venho, nos esperam.

*

Na descida do monte confabulam:

- Rabi! – indagam como receosos – dizem os escribas que é mister que venha primeiro Elias...

- Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo quanto quiseram. Assim farão, também, padecer o Filho do Homem...

“Então entenderam os discípulos que lhes falara de João Batista.”

A nova revelação de ser Elias, João Batista renascido, surpreende os companheiros que começam a compreender os inescrutáveis desígnios do Pai.

Os Espíritos estão estuantes de felicidade. Há festa em seus corações.

*

Jesus e os discípulos continuam descendo.

O dia esplende. Os acontecimentos são sóis em suas almas.

A plataforma do Tabor fica para trás.

A planície imensa se estende embaixo.

Lá estão as criaturas sofredoras e ansiosas, os companheiros aguardando.

Amedrontados, os discípulos se revezam.

- Afasta-te, Satanás! – exclama Judas, irado, enquanto o obsesso ulula.

- Filho da trevas, semente de Belzebu – brada Tadeu, com a voz rouca e os olhos injetados – por quem és, abandona tua vítima!

- Decaído, imundo – vocifera, pálido e suarento, Natanael – eu te exorto a que retornes às geenas!...

Curiosos se acercam dos gritadores, enquanto o endemoninhado, como se multiplicasse as forças que o vampirismo espiritual consome, mais se debate no solo e corcoveia, exasperado, a ameaçar o débil corpo em convulsão, semivencido.

É o próprio Dibbuk – soluça, desanimado, Felipe.

- Nada conseguiremos!1 – arremata o filho de Cléofas.

- Onde andará o Mestre – indaga perturbado, Simão, o zelote – que não vem socorrer-nos? Não saberá Ele de nossa aflição?...

Entreolham-se, estremecem, enquanto o obsidiado espumeja e se debate.

Falam todos de uma vez. Gritam inutilmente.

Vendo o Mestre e os companheiros, que chegam à charneca das misérias humanas, correm, aflitos e O saúdam.

- Que é que discutis com eles? – interroga, sereno, o Senhor.

- Mestre, trouxe-te o meu filho, que tem um Espírito mudo. E este, onde quer que o apanhe, despedaça-o, e ele espuma, e range os dentes, e vai-se secando; eu disse aos teus discípulos que expulsassem, e não puderam!

- Se podes – apela o pai – salva o meu filho.

- Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê.

- Eu creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade.

O Rabi se comove. O semblante sereno expressa toda a angústia do seu Espírito.

Sem qualquer mágoa, fita os companheiros medrosos e os admoesta com veemência e compaixão. Compreende as fraquezas dos convidados a esparzir a semente da boa-nova.

Como a justificar-se a si mesmo e aos outros, Judas tenta esclarecer:

- Fizemos tudo quanto nos ensinaste e nada conseguimos...

- Até quando vos sofrerei e estarei convosco?

A indagação fica no ar, sem resposta.

A arrogância da fraqueza é mais petulante do que a vaidade da força.

O sinal do fracasso no orgulho é como chaga de fogo a requeimar.

- Espírito mudo e surdo...

Pálido e fraco, o moço sorriu. Avia gratidão sem palavras. Osculou a mão do Rabi e, conduzido pelo pai em êxtase de alegria, seguiram ambos no rumo do lar.

*

À noite, quando o zimbório se vestia de estrelas brilhantes, ainda sob o impacto das manifestações do Mestre, no Tabor e na planície, Simão, traduzindo possivelmente a visível inquietação dos companheiros, aproximou-se d’Ele, que meditava, e indagou, visivelmente emocionado:

- Por que não puderam eles expulsar o espírito imundo?

- Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração e jejum – elucido o Amigo.

Desejando, no entanto, utilizar o momento para melhor instruir os companheiros desatentos e pretensiosos, o Senhor esclareceu:

- Antes de tudo é necessário compreendamos que os espíritos imundos viveram antes, homens que foram, homens que continuam sendo. Enganados, como se deixaram conduzir no corpo, prosseguem enlouquecidos, fora dele. A morte não os transformou. Viajores do tempo, são o que fizeram. Ligados mentalmente às reminiscências das ações, demoram-se, sofrendo-as, imanados aos que amaram, vinculados àqueles que os fizeram sofrer...

Fez uma pausa, espontânea. E prosseguiu:

- Por essa razão a Boa-nova é um hino de amor e perdão. Amor indistinto e perdão indiscriminado.

Diante deles, nossos irmãos na sombra da ignorância, nenhuma força possui força senão a força do amor. Não apenas expulsá-los daquele convívio a que se agregam parasitariamente, mas também socorrê-los, enlaçando-os com amor...

Novamente silenciou, e envolveu os amigos num olhar de bondade, para logo continuar:

- São nossos irmãos da retaguarda, perdidos na ilusão das carnes a que teimosamente pretendem continuar ligados. Não se prepararam para a verdade. É em razão disso que a Mensagem de Vida não se reveste das indumentárias fantasiosas tão do agrado geral. É semente de luz para fecundação no solo do espírito.

Diante, pois, deles – possessos e possessores – só a oração do amor infatigável e o jejum das paixões conseguem mitigar a sede em que se entredevoram, entregando-os aos trabalhadores da Obra de Nosso Pai, que, em toda parte, estão cooperando com o Amor, incessantemente.

Se amardes ao invés de detestardes, se desejares socorrer e não apenas os expulsardes, tudo fareis, pois que tudo quanto eu faço podeis fazê-lo, e muito mais, se o quiserdes...

No leve ar da noite bailavam suaves brisas espraiando para o futuro a palavra do Rabi, como antevisão gloriosa para os dias porvindouros da Humanidade.


Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicada no livro “Primícias do Reino”



Inquietações Justificáveis


Amélia Rodrigues

Aquele fora um dia exaustivo e cheio de surpresas.

A Boa Nova espraiava-se como perfume docemente carreado por mansa brisa. Cidades e aldeias da Galileia eram beneficiadas pelas informações libertadoras em torno da vida, do ser humano e do Reino de Deus. Outras tetrarquias igualmente haviam sido abençoadas pela presença do Rabi, e de regiões próximas, além do rio Jordão, pertencentes a outros países, chegavam peregrinos e enfermos em busca da Sua misericórdia.

Por outro lado, aumentava também a animosidade de fariseus, saduceus e herodianos contra Jesus, por sentirem-se ameaçados pelas sublimes palavras de que Ele se fizera portador, e em razão do seu absoluto desinteresse pelas posses materiais e quejandos.

O retorno de Gadara, após a libertação de Legião e da indiferença dos gerasenos, mais interessados nos seus porcos do que no Mestre, causara sentimentos desencontrados e frustrantes nos Seus companheiros.

Enquanto as barcas cortavam as ondas em movimentos contínuos sob um céu iluminado fortemente pelo Astro-rei, alguns discípulos não escondiam a decepção e a raiva em decorrência do acontecimento... Caprichosos, sequer deram oportunidade ao Rabi para que expusesse o que possuía de beleza interior para oferecer-lhes. A sua agressividade, às portas da cidade, irritara Pedro a tal ponto, que Lhe solicitara fizesse descer fogo celeste para os destruir, no que não fora atendido.

O Mestre compreendia-os na ignorância em que se refugiavam e tivera deles infinita compaixão. Nem toda semente encontra solo fértil para germinar. Ele cumprira com o dever de auxiliar o enfermo a ver-se livre da opressão terrível dos obsessores que o constringiam, desde há muito, ameaçando-lhe a existência.

Após o largo percurso no mar, atingiram a praia de Cafarnaum onde a multidão acostumada a ouvi-lo e a receber-Lhe as bênçãos, ansiosamente aguardava inquieta.

Repetiu-se o espetáculo dos infelizes trazidos por familiares e a esforço pessoal, a fim de conseguirem a cura para as suas mazelas. Não lhes interessavam muito as palavras repassadas de ternura e misericórdia, saturadas de amor, que lhes podiam propiciar a cura real profunda, a do Espírito. A preocupação exclusiva era com o corpo e suas deficiências, sem sabedoria para tentar entender-lhes as causas.

Quando o velário da noite desceu, salpicado de lírios estelares, após a refeição na casa de Simão, o Amigo buscou a praia quase deserta onde as ondas sucessivas do mar cantavam sua melodia, aureoladas pela espuma branca que as praias absorviam e aguardou que os amigos se Lhe acercassem, o que logo ocorreu.

Suave perfume de flores miúdas misturadas à maresia e tudo mais em volta formavam um cromo em movimento de beleza incomum.

Bartolomeu era talvez o discípulo mais discreto e algo experiente. Nascera em Caná da Galileia e era conhecido como Natanael (que significa Deus deu) Bar Tolmay, que ao ser apresentado a Jesus, o Mestre lhe informou que já o conhecia pelas suas reflexões à sombra das árvores na cidade. Mas ele, por sua vez, quando informado sobre o Mestre e Sua origem redarguira, perguntando: - Que pode vir de bom de Nazaré? Tornara-se-Lhe discípulo humilde e devotado, que mais tarde daria a existência em holocausto de amor em Sua memória.

Utilizando-se do silêncio que se fizera natural, interrogou o amado Amigo: Por que os demônios exercem domínio sobre as criaturas humanas, enlouquecendo-as, vampirizando-as, aniquilando-as quase, sem nenhuma piedade? O Rabi olhou ternamente, o discípulo sisudo e respondeu com suave entonação de voz: - Convém recordarmos que os demônios são as almas daqueles que habitaram a Terra e foram despidos pela morte, retornando à pátria de origem: o mundo espiritual. Porque a sua era uma conduta vilipendiosa, entregue aos disparates da insensibilidade moral, à luxúria e às paixões perversas, despertaram além da morte com as imensas feridas dos sentimentos abertas em chagas vivas e, infelizes, comprazem-se em atormentar todos aqueles com os quais se afinizam. As criaturas humanas ouvem e tomam conhecimento das Escrituras que advertem quanto ao comportamento e aos deveres para com Deus e os seus irmãos. No entanto, entregam-se aos prazeres cumprindo algumas recomendações legais, sem qualquer vínculo com a vida espiritual. Dão a impressão que viverão para sempre no corpo e, quando descobrem a imortalidade acreditam-se credenciadas ao repouso no paraíso gratuito que pensam merecer. O Pai generoso e sábio permite que os mais comprometidos porém, voltem à Terra em estado de redenção, enfermos e debilitados, tomando-se vítimas daqueles aos quais prejudicaram e anatematizaram.

E qual seria - indagou o discípulo atento -o meio para impedir essa ocorrência lamentável por sua crueldade? Os profetas demonstraram que a existência terrena é oportunidade para o crescimento espiritual e prescreveram as leis que, obedecidas, precatam os indivíduos das interferências do mal. O egoísmo, a soberba, os sentimentos negativos, porém, prevalecem em sacerdotes, levitas, fariseus, saduceus inescrupulosos, divulgando as suas ideias fantasistas e negadoras da realidade de Deus, facultando a degradação íntima, embora disfarçada pela pureza dos trajes impecáveis, da hipocrisia religiosa, que a todos empurram para a submissão às forças do mal. Para sanar a calamidade proponho o amor incondicional como recurso preventivo e curador de todas as desgraças, por dignificar o ser humano e resguardá-lo das influências destrutivas provindas do mundo espiritual. Quando se ama, eliminam-se as imperfeições e ascende-se moralmente a estâncias elevadas, que se constituem impedimento para as fixações mentais desses desventurados com os aflitos da Terra. Dias virão, no futuro, em que o Pai enviará os Seus mensageiros em meu nome para iluminar as consciências terrestres e resgatar os que demonizam as demais, voltando-se para o bem.

Bartolomeu refletiu um pouco e porque o silêncio geral o estimulasse, volveu a nova interrogação: - E o que acontecerá a Legião, a esses Espíritos que foram expulsos do endemoniado de Gadara? Voltarão à Terra - ripostou o Mestre - sofridos e assinalados pelas enfermidades do mal que praticaram, depurando-se mediante as bênçãos das dores acerbas. Ninguém burla as leis de amor, de compaixão e de misericórdia estatuídas pelo Pai. Por isso, é necessário ser-se simples como o lírio do campo, humilde e puro de coração como as leves borboletas, pobre de espírito de inveja e de torpezas e sentir fome e sede de justiça superior e nobre, a fim de ser-se saciado e encontrar-se o reino dos céus onde passará a habitar.

Logo silenciou, detendo-se na contemplação dos astros luminosos no firmamento. As ânsias da Natureza registraram nas suas ondas e, na atualidade, o conhecimento da obsessão atestam a afirmativa do Senhor, traçando diretrizes para quem deseja a conquista da saúde em plenitude.


Amélia Rodrigues Psicografia de Divaldo Pereira Franco, na sessão mediúnica da noite de 21de dezembro de 2014, no Centro Espírita Caminho da Redenção, em Salvador, Bahia. 



quarta-feira, 30 de março de 2016

JUDAS ISCARIOTES


Humberto de Campos

Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judeia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.

Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.

Os espíritos podem vibrar em contato direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.

Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.

- Sabe quem é este? – murmurou alguém aos meus ouvidos. – Este é Judas.

- Judas?!...

- Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...

Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade de seu coração, ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.

- O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariot? – Sim, sou Judas – respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...

- É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?

- Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galileia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanhedrin desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas ideias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.

- E chegou a salvar-se pelo arrependimento?

- Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentido na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...

- E está hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.

- Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores.

Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os seus prantos – infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços em todos os padrões do ouro amoedado...

- É verdade – concluí – e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-LO.

Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.

Recebida em Pedro Leopoldo a 19 de abril de 1935

Do livro Crônico de Além Túmulo. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.



REGRESSO DE SIMÃO PEDRO

Maria Dolores

Simão Pedro desperta, além da vida humana.
Retoma, pouco a pouco, as forças da memória
Terminara, por fim, a luta insana
Do flagelo por grande pesadelo
Recorda a cruz do fim, levantada ao avesso,
Que aceitara na Terra por vitória...
Sabe que está no Além, pensando em recomeço
Do próprio apostolado...

Onde estaria o Mestre Sempre Amado?
E os outros companheiros
De ânimo nobre e forte,
Que o haviam no mundo, precedido,
Sob a perseguição sem pausa e sem sentido,
Ao encontro da morte.

A brisa da manhã suave e cristalina
Trazia-lhe perfume ao leito novo e alvo...
Indagara Simão: “Que surpresa teria?”.
Tocou o próprio corpo, achou-se são e salvo
E chorava, enlevado, em suprema alegria...

Alguns instantes mais e ouviu, enternecidamente,
Cânticos de louvor e saudação;
Alguém surgiu à porta, de repente,
Envolto em doce luz
A doar-lhe conforto e proteção...
Pedro entendeu quem era a bradou-lhe: “Jesus!”.

Erguendo-se, em seguida,
Leve e ágil, gritou: “Ave, Senhor da Vida!...”.
Cristo abeirou-se dele, a enlaça-lo sorrindo,
Depois vieram outros companheiros,
Instrutores, amigos, mensageiros,
Do júbilo fazendo o festival mais lindo...

Pedro enxergou, feliz, os vergéis exteriores...
Eram jardins imensos,
Recheados de flores.

Em profunda euforia,
O ditoso Simão
Tomou a si a mão
Que Jesus lhe estendia
E disse, quase em pranto:
- Senhor; estou cansado,
Não mais me distancies de teu lado...
Trago comigo a dor
Dos que moram no mundo,
Aquele imenso caos, cada vez mais profundo,
De penúria, fadiga e sofrimento...
Não desejo perder as luzes que hoje alcanço,
Permite-me, Senhor ficar contigo,
Neste celeste abrigo...
Necessito de paz, de socorro e descanso...
Ao mundo de onde venho,
Pelas tribulações padecidas no lenho,
Não mais quero voltar...
Desejo aqui viver contigo, neste lar...

Mas Jesus apontou-lhe o imenso espaço à frente
E falou-lhe a sorrir:
- Fica, Simão, se estás contente...
Estes sítios são teus,
Tanto quanto de todos os irmãos
Que serviram, na Terra, à bondade de Deus...

Cristo fez pausa e, logo após,
Explicou: “Quanto a mim,
Não posso repousar;
A construção do bem é o meu lugar...
Ouve, Simão!... Enquanto
Houver na Terra um só gemido
Numa gota de pranto,
Enquanto houver no mundo um coração caído,
Devo esforçar-me por permanecer
No trabalho do amor que é meu dever...
Mas, descansa, Simão!... Ver-nos-emos depois,
Nunca houve distância entre nós dois “...”.

Afastou-se Jesus,
Entretanto, Simão fitando o Excelso Amigo,
Bradou sem vacilar:
- Senhor, eu vou contigo!...

No passo firme do Divino Mestre,
Ambos se retiraram das Alturas,
Buscando a direção das faixas obscuras
Da vastidão terrestre...

Na retaguarda, em paz, ficou a multidão
De almas angelicais, numa doce canção,
Cujo estribilho recordava
Esta expressão de luz dos hinos galileus:
- “Louvado seja o amor!... Bendito seja Deus!...”.


Psicografia de Chico Xavier, mensagem do Espírito Maria Dolores, publicado no livro “Alma e Vida”


sábado, 26 de março de 2016

A Rediviva de Magdala


Amélia Rodrigues

A emoção desdobrava em lágrimas, enquanto sentada, à entrada do sepulcro aberto na rocha, conjeturava: que acontecera? Para onde O teriam levado e por que O trasladaram daqueles sítios, no silêncio da noite?

A inquietação assumia proporções de desespero que a dominava lentamente.

O Sol irisava as nuvens pardacentas e o vento frio sacudia as poucas anêmonas e raras rosas por entre os arbustos.

Na mente ecoavam, sonoras, as vozes dos mancebos de vestes alvas, que lhe disseram: “Não tenhas medo, porque eu sei que buscas a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui, porque já ressuscitou...”

Ela cria que o Mestre, conforme dissera, ressuscitaria dos mortos. Temia, no entanto, que os judeus houvessem roubado o corpo.

Atemorizadas, Joana de Cusa, Maria, mãe de Marcos, e as outras companheiras desceram à cidade para anunciar o desaparecimento do corpo do Rabi.

Pedro e João subiram o monte ansiosos e constataram os fatos: os lençóis com as substâncias aromáticas do embalsamento no túmulo vazio, o lenço, a pedra afastada...

Estarrecidos, os dois discípulos retornaram à cidade, com as tristes novas; ela ficara chorando.

Os acontecimentos daqueles últimos dias foram muito dolorosos e surpreendentes. Não conseguia compreender nem concatenar os sucessos.

Uma saudade feita de pungente dor estrangulava-lhe o peito.

Foi muito rápido. Teve a impressão de uma aragem que perpassou levemente perfumada.

Voltou-se para trás e por entre as lágrimas viu, a poucos metros, um homem que lhe perguntou:

“- Mulher, por que choras? Quem buscas...?”

Aquela voz, aquele perfil! Não pôde concluir o raciocínio.

“- Maria!”.

“- Raboni”.

O deslumbramento dominou-a. O Mestre vivia e ali estava, radioso como a madrugada nascente!

“- Não me detenhas!... vai para meus irmãos e dize-lhes que eu sigo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.

A luz de ouro do amanhecer incidia sobre as suas vestes, que fulguravam, e miríades de pequeninos sóis pareciam incrustados n´Ele.

Ficou esmagada de felicidade. Desejou traduzir com palavras as impressões incomparáveis como as dores vividas até há pouco. Não pôde fazê-lo; a voz estava morta na garganta hirta e constringida. “Vai para meus irmãos e dize-lhes...” – reboava-lhe nos refolhos do espírito.

Pôs-se de pé. Sorriu e, sem mais delongas, tomou o rumo da cidade que despertava, com a alma em cânticos de excelsa alegria.

O leve ar da manhã embalsamada com os últimos perfumes da quadra, o verde dos campos de Acra e Bezeta, a paisagem emoldurada de Sol com o píncaro dos montes debruado a ouro – eis a tela sublime em que Ele volvera.

Venceu a distância com febricidade e atingiu o cenáculo onde os companheiros se acolhiam constrangidos e receosos.

Pairavam no ambiente triste as sombras do desgosto.

Ela disse, logo que atravessou a porta, e sua voz cantava: Eu O vi, vi o Rabi! O Mestre voltou aos que O amam!

Sorria e chorava. Tartamudeando, com o rosto rubro pela emoção, prosseguiu:

- Mandou-me anunciá-LO aos seus irmãos. Elevar-se-á ao Pai. Ouvi bem: Jesus vive!
Todas as suas fibras tremiam, como se fossem disjuntar.

Sua voz vibrava harmonias que não encontravam receptividade no coração dos companheiros. Àqueles, ela conhecia da convivência diária naquelas últimas semanas.

- Conta-me, filha – falou Maria, ansiosa, aquela que era mãe d`Ele – fala-me, tudo. Meu filho voltou?

A voz tremia de compreensível emotividade.

- Não o creio – bradou alguém dentre eles. – O Mestre morreu e deixou-nos nesta dificuldade, a sós... Não creio na Sua volta. Só mesmo eu O vendo...

Ela relanceou os olhos muito brilhantes pelo recinto, procurando o contraditor.

Ele avançou na sua direção, face contraída num rictus de ira e desencanto. Antes que ela dissesse algo, ele se interpôs, frente ao auditório perplexo, atônito, e vociferou:

- Mesmo que Ele viesse...

Interrompeu-se numa pausa.

- ... iria apresentar-se a quem? Certamente que a Simão que Ele elegera para conduzir-nos; ou a João, a quem sempre distinguiu com o Seu amor; ou a Sua mãe...

Transparecia no tom sarcástico e zombeteiro da palavra cortante todo o azedume do seu espírito atormentado e infeliz.

E depois de pausa maior, ante a estupefação de todos:

-... Mas a ti Ele apareceu? Não, não o creio. Não creiamos. Não é possível que Ele tenha aparecido exatamente a ela. Não estiveram outras no sepulcro? João e Pedro lá não foram? Por que a ela?...

Foi como uma chuva de gelo e mal-estar que caísse sobre todos.

Um silêncio incômodo invadiu a sala.

Ela recuou.

As indagações finais foram cruéis punhaladas. “A ti?” “Por que a ela?” Eram ácidos queimando e requeimando.

Mesmo assim, com grande esforço, vencendo o próprio sofrimento, retrucou com voz débil:

- É verdade! Mesmo que não o creias, eu O vi. Apesar da minha antiga e infeliz condição – balbuciou humilhada – a mim me apareceu há pouco o Rabi...

- Eu o creio, filha – acentuou a sua saudosa mãe. – Secreto pressentimento diz-me que meu Filho vive. Eu o creio, porque sei que a nossa dor e saudade estão com Ele, como a Sua saudade se demora em nós.

Envolveu-a docemente e procurou ouvi-la com atenção e carinho.

Mentalmente ela refez os caminhos percorridos – longos e tortuosos!

Muitas vezes a bofetada lhe estrugiria em plena face. Era mesmo natural que lhe duvidassem da palavra. Ela sentia toda podridão. Não fora o chamado do rabi e estaria, talvez, na enxerga da infinita descompostura ou na total destruição. E muitas vezes, no futuro, verteria o pranto da recuperação, até às fezes, por ter sido louca.

É comum proclamar-se virtude, meditava, e impedir-lhe a propagação.

Quantas novas tentações estava procurando sublimar, só ela o sabia.

Facilmente se impreca contra o erro, mas bem poucos são aqueles que alongam as mãos convertidas em alavancas de soerguimento para ampararem as vítimas da ignorância e da criminalidade.

Não que desejasse justificar-se.

Sua conduta fora inclassificável. Ela fora abjeta, sim, reconhecia-o.

Em Magdala, seu nome e sua vila faziam parte integrante do roteiro de degradação da cidade.

Ali se estabelecera...

*

Magdala era um centro de comércio e indústria de muita prosperidade. Para lá acorriam mercadores e aventureiros de todo o Oriente. Reclinada sobre as bordas do mar, gozava de clima ameno e desfrutava de águas piscosas privilegiadas.

Estação de repouso, recebia viajantes ilustres e nobres gregos, romanos, babilônicos, fenícios, medos que lhe disputavam as amenidades, conseguindo negócios rendosos e prazeres fáceis.

Compreensivelmente afluíam, também, aventureiros e cortesãs de corpos cansados que exibiam em luxuosas residências a mercadoria do próprio sofrimento, em noites de orgia e loucura, no caminho da queda total nas valas morais.

Depois de dolorosas e rudes experiências, ela conseguira adquirir, na cidade famosa, luxuoso palacete, favorecido com jardins e pomar imenso onde sicômoros antigos e vetustos confraternizavam com plátanos, roseiras e madressilvas pequeninas.

Em sua casa recepcionava os homens mais requestados que transitavam pela urbe agitada.

Era muito jovem; o licor da mocidade corria capitoso e sedutor, atraindo compradores ricos, que se disputavam a vaidade de consegui-lo.

A noite sempre lhe fora comparsa discreta, pois que, ao cair das sombras e ao acender das lâmpadas e tocheiros, a velha porta de carvalho, nos muros externos, dava acesso àqueles que, na via pública, por preconceitos e hipocrisia, exibiram a honra de apedrejá-la logo houvesse ocasião...

Possuía na sua vivenda de linhas gregas, sóbrias, tudo quanto a ambição pode cobiçar: joias exóticas de alto preço, perfumes raros e essências originais em vasilhames de alabastro trabalhado, tapetes persas e babilônios, arcas abarrotadas de sedas e damascos, móveis de mogno artisticamente lavrados, moedas de todas as procedências, servos originários de vários países... tudo quanto a vaidade diz que produz felicidade. Mas não se sentia feliz nem ditosa.

Na imensa residência rica, cheia de preciosidades, se sentia vazia, vulgar e atormentada.

A sua condição de mulher rica não lhe mudava o caráter infame de pobre meretriz, mercadora dos perfumes da ilusão.

Sofria indizível amargura.

Em longas e tristes noites de soledade, parecia escutar vozes zombeteiras que lhe chicanavam a desdita e quase sempre experimentava os incomparáveis tormentos da obsessão pertinaz na mente e carnes cansadas e doloridas.

Diziam-na endemoninhada e temia sê-lo.

As mulheres, talvez mais felizes, além de seus muros, invejavam-na, detestando-a ao mesmo tempo e os homens inquietavam-na, perseguindo-a.

Tinha ânsia de paz no imenso cairel do abismo das paixões aniquiladoras e desejava o amor – um estranho amor – um estranho amor que ambicionava secretamente e sem que o encontrasse.

O amor que conhecia era, em verdade, luxúria e dissabor.

Acreditava no amor que fosse feito de paz e ternura, doação plena e tranquilizante. Não esperava fruí-lo, todavia. Era sumamente infeliz, aguardando, um dia não muito longe, a selvajaria de algum guerreiro déspota impiedoso ou as pedras da falsa pudicícia, na praça...

De coração generoso, gostava de ajudar e por ser infeliz compreendia a dor dos sofredores e se apiedava da aflição dos desditosos. Suas mãos e dedos adereçados derramavam moedas e ofertavam pães, e se as portas da sua casa se fechavam frequentemente aos servos do prazer, seus servos tinham severas ordens de abri-las à dor e ao sofrimento que buscasse ajuda ou guarida.

Quando a serenidade lhe possuía a mente, voltava à infância, risonha, como em sonhos e enlevos festivos, surpreendendo-se, depois, com a realidade causticante.

*

O nome d`Ele soava na acústica dos corações como a melodia suave de uma harpa tangida ao longe.

A dor foge, ao contato das suas mãos, e a luz dilata pupilas mortas; uma alegria espiritual invade aqueles que convivem com Ele e uma esperança estranha e doce empolga os corações, onde Ele se encontra – comentavam todas as vozes.

As servas falavam sobre Ele com estranho fascínio no olhar, antes mortiço e sem vitalidade. Chamavam-nO Libertador e completavam que não era um libertador comum, quais aqueles que prometem quebrar as algemas de ferro da escravidão política e social, mas um singular salvador que oferecia paz perene e libertação total: tranquilidade e segurança íntima independentes da situação física em que transitassem.

Nas praças ou nas praias, pelos caminhos as multidões seguiam-nO fascinadas, como se Ele exalasse felicidade, naqueles dias rudes de provanças e misérias.

Numa noite de perfumes primaveris, instada por uma serva de confiança, dedicada e fiel, permitiu um diálogo com Ele.

Trazia o coração opresso e sentia álgida constrição das forças ignotas que lhe atenazavam o espírito, perturbando-lhe a razão e amargurando-lhe as horas.

A jovem, que O escutara às vésperas, falou com desembaraço: - Senhora, hoje Ele pernoita perto daqui, em Cafarnaum. Ide vê-LO, senhora!

A voz era quase súplice.

Dançavam-lhe na mente as fantasias do seu desespero, e assim mesmo, considerou:

- Receber-me-á, o teu Rabi? – dissera com desprezo de si mesma. – Os Rabis são puros e detestam os infelizes, levantando a voz para ameaçar com castigos e punições aqueles que, iguais a mim, tombaram nas rampas da desgraça...

- O Rabi – esclareceu a jovem, entusiasta -, ama os sofredores e confabula com todos, informando que as impurezas muitas vezes estão ocultas e ninguém as vê, dignos todos, no entanto, de compreensão e ajuda.

- Mas, eu sou diferente. Tu sabes que sou... (Lágrimas fluíram quentes e confortadoras como há muito não expunha).

- Senhora, Ele diz que veio encontrar o que estava perdido.

- Sou uma condenada... dominada por Espíritos imundos!

- Ele é a Porta de redenção.

-?...

Vamos, senhora! Ele vos receberá!

A noite balouçava luzes miúdas no firmamento escuro, quando uma embarcação singrou as águas, no rumo de Cafarnaum.

O diálogo fora breve. Toda uma vida, porém, perpassou nele...

Ao retornar não era a mesma.

Estranha e poderosa transformação imprimira no seu íntimo esperanças e ideais novos, dantes jamais sonhados.

Sentira-se morrer enquanto O ouvia e sentira-se viver enquanto retornava.

Na manhã seguinte Magdala soube, pasmada, a notícia da conversão da pecadora. Distribuíra tudo quanto possuía e, com o estritamente necessário, iniciara vida nova.

- Retornará – zombavam uns.

- Sempre foi louca! – mofavam outros.

- A cidade não a perderá; voltará às noites de prazer! – arrematavam os mais cínicos.
Transcorridos poucos dias...

*

Magdala era uma cidade paradoxal.

Rica e deslumbrante, hospedava esses caracteres exóticos e atrabiliários que pululam em todas as cidades de luxo e lazer, em todos os tempos.

Havia em Magdala um homem de hábitos estranhos. Chamava-se Simão e se permitia o devaneio de recepcionar pessoas ilustres que transitavam pela urbe famosa. Simão era fariseu, tendo o orgulho de zelar pelas tradições e exibir a fortuna pessoal.

Pelo seu palacete passaram respeitáveis figuras das artes e do pensamento, gênios das guerras e das leis, sacerdotes e magos itinerantes. E os banquetes com que os homenageou, homenageando a si mesmo, foram comentados por toda a cidade dias a fio.

Simão, como todas as pessoas de Magdala, ouvira falar sobre Jesus. Empolgado com a notoriedade do Galileu, teve a ideia de recebê-lO em seu lar, apresentá-lO aos amigos, dialogar com Ele.

Talvez, pensava Simão, fosse o Esperado Libertador, conforme lhe afiançara um rico mercador, e seria prudente ser-Lhe amigo para estar em triunfo à hora do seu triunfo; se fosse um Rabi autêntico, ser-lhe-ia honroso receber um homem santo, naqueles dias de franco profetismo em Israel.

Sabendo que o Mestre se encontrava perto de Magdala, enviou emissários com o convite auspicioso.

Tendo-o aceito, no dia aprazado, o Rabi e dois discípulos, ante a curiosidade dos que acorreram à estrada por onde deveriam passar, chegaram à casa engalanada e foram recebidos com risos de júbilo e mal disfarçado motejo.

Introduzidos à intimidade doméstica, o repasto teve início.

Os divãs espalhados receberam os convidados confortavelmente e os servos, conduzindo as pequenas mesas com iguarias e frutos secos, puseram-se, obsequiosos, a servir.

Harpas dedilhadas suavemente enchiam a sala ampla, entre colunas esguias, de melodia triste.

O ar, porém, pesava.

Simão olhava de esguelha o Estranho que parecia distante.

Silêncio incômodo entre os convidados tornava a festa insípida, desagradável.

As motivações de palestras redundavam em respostas monossilábicas, sem interesse.

Quase a fim do banquete, ouviram-se gritos e vozes em altercação violenta, quando, subitamente, irrompeu sala a dentro a figura desgrenhada e chorosa de estranha mulher.

Os cabelos desnastrados se colavam à larga testa banhada de suor; os olhos brilhavam com intensidade, fora das órbitas; os zigomas salientes, corados, pareciam maçãs maduras; as vestes desalinhadas...

Ela olhou em derredor, como se procurasse alguém e, semienlouquecida, arrojou-se aos pés do Rabi, que permaneceu, impassível, na posição em que se encontrava.

Tudo fora tão rápido, que Simão não tivera tempo de tomar qualquer atitude.

Estava estupefato! Conhecia, sim, aquela mulher. Visitara antes sua casa e lá participara de alguma noite orgíaca...

Estranha sensação visitou-o num átimo.

Suor frio e abundante começou a escorrer, desagradável.

Seu lar honrado acolhia uma mulher de má vida.

Desejou expulsá-la. Intentou mesmo fazê-lo. Temeu, porém.

Conhecia a coragem dela, a sua audácia, pois que se atrevera a chegar até ali...

Era Maria!

Transtornada pela vitória que experimentara desde o encontro com o Rabi, sentira-se liberta dos sete Espíritos demoníacos que a infelicitavam. Era outra, inteiramente renovada.

Quanto sofrera sob o jugo deles!

Mortificações, desesperos sem-nome, crises terríveis de languidez e pavor experimentara nas suas malhas cruéis.

Desde, porém, que os Seus olhos claros, na noite que O fora ver, incidiram sobre ela, que se sentia libertada.

Uma alegria nova, como jamais dantes experimentara, dominou-lhe o espírito aturdido e sofredor.

Sentia-se esperançada, embora recém-saída do pantanal.

Conjecturando, recordava-se das palavras d`Ele, no encontro inolvidável: “Há flores perfumadas e de brancura imaculada que espalham aroma sobre o lodo que lhes segura as raízes...”

Refaria os caminhos. Lutaria!

Após libertar-se da canga da posse desejou, publicamente, apresentar os sinais inequívocos do seu renascimento.

O banquete na casa de Simão, que ela conhecia, significava sua oportunidade.

Não trepidou. Poderia ser expulsa ou mesmo lapidada. Não tinha de que recear. Mesmo que fosse necessário resgatar com sangue suas culpas, estava disposta a lavar a própria vergonha.

Animada por tais pensamentos seguiu arrebatada com a mente em febre de esperanças.

Ei-la, agora, ali. Todos a fitavam com desagrado. As lágrimas saltavam-lhe dos olhos e caíam sobre os pés dEle. Enxugava-os com a basta cabeleira.

Quebrou o gargalo do vaso de alabastro que conduzia e derramou o unguento nos pés do Rabi, balsamizando-o com piedoso carinho. O perfume de rara essência invadiu o recinto e ela prosseguiu repetindo o generoso gesto.

Ele não dizia nada, como se nada sentisse.

O almoço foi encerrado friamente. Os demais convidados faziam questão de não ocultar o falso constrangimento.

Entre dentes e irado, Simão resmungava:

“ – Se este fosse profeta bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora”.

Jesus relanceou tranquilamente os olhos muito puros, e com serena entonação de voz, indagou:

“ – Simão! Uma coisa tenho a dizer-te”.

“ – Dize-a, Mestre”.

“ – Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos e o outro cinquenta dinares. Não tendo eles com que pagar a dívida, perdoou-lhes a ambos. Dize, pois, qual deles o amará mais?”.

Simão sorriu pela primeira vez. Era astuto, hábil nos negócios. Instado à conversação direta, respondeu com alegria:

“ – Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou”.

“ – Julgaste bem”.

O Rabi dirigiu à mulher sofredora e inquiriu Simão, outra vez:

“- Vez esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta mos regou com lágrimas e mos enxugou com os seu cabelos. Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com unguento... Por isso te digo que os muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama”.

Simão estava estarrecido. Não compreendia aquelas palavras claras, talvez pelo impacto das desordenadas emoções que estrugiam no seu espírito atormentado e pusilânime.

Abriu desmesuradamente os olhos e fitou o Rabi.

O Mestre pôs-se de pé e oferecendo as mãos à pecadora, falou com doçura:

“- Os teus pecados te são perdoados... vai-te em paz!”.

Ela se levantara de um salto, exuberante de felicidade, e explodindo sonora gargalhada saiu, como chegou: a correr.

Desapareceu de Magdala.

Todas as tardes, porém, na multidão, ajudando crianças enfermas, oferecendo olhos a cegos e mãos a trôpegos, arrependida e ansiosa pela própria renovação total, pôs-se a seguir a Jesus de cidade em cidade, por onde Ele fosse...

Há poucos dias entrara com os demais galileus, jubilosa, em Jerusalém.

Havia, porém, tanta tristeza n`Ele, ao cavalgar com o jumento, que se entristecera, também.

*

Continuou repassando os acontecimentos pela mente atribulada.

A denúncia de Judas, a prisão dEle, o julgamento arbitrário, a caminhada para o monte da Caveira...

Daria a vida para ter-Lhe diminuído os sofrimentos.

Quando, com as outras mulheres que O seguiam, O vira cair, correra a sustentá-LO.

Ele, estoico e sublime como sempre, lhes falou por entre lábios macerados e feridos:

“- Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas, e por vossos filhos. Porque dias virão em que direis: Bem-aventuradas as estéreis e os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram! Direis aos montes: caí sobre nós e aos outeiros: cobri-nos. Porque se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco?”.

Gargalhadas zombeteiras estrugiram na multidão...

Por fim a dolorosa hora da Cruz.

Ante as lágrimas de Sua Mãe, fizera o legado da fraternidade universal, entregando-a a João e este àquela. Ele ficara no madeiro da infâmia.

Fitando-o exangue, já exânime, nos instantes extremos, receara enlouquecer de dor, ao lado de Sua Mãe, quando notou que a cruz, símbolo tradicional de punição, se tornava rota eloquente de sublimação, após Ele: uma ponte para a Imortalidade.

Quando a cabeça d`Ele pendeu, desejou cingir-lhe outra vez os pés, e osculá-los com ternura, mas se sentiu imobilizada...

*

Abriu os olhos doridos de chorar ante as recordações.

- Bom animo, filha! – falou ternamente a Mãe sublime. – As nossas dores estão com Ele.

- Eu O vi, mãe! – gaguejou.

- Creio-o, filha. Creio, sim. Sei que meu filho vive!

*

Os dias passavam agora feitos de saudade e recordações. Voltou com os companheiros à Galileia franca e generosa, às águas inquietas do mar que Ele tanto amara.

A frase terrível, com que o companheiro invigilante a satirizara, continuava perseguindo-a mentalmente.

Lá Ele reapareceu e falou longamente a todos, quase quinhentos, concitando-os à pregação dos seus “ditos” e à edificação do Reino da luz nas fronteiras do espírito.

“Ide e pregai a todas as gentes...”.

“No mundo só tereis aflições...”.

“Lembrai-vos de mim, eu venci o mundo...”.

“Eu vos mando como ovelhas mansas...”.

Soavam no ar os novos ensinos...

Ontem foram as notícias trazidas pelos jornaleiros dos caminhos de Emaús, hoje era a pesca incomparável... Ausente, Ele jamais estivera tão próximo inundando os corações com Sua presença inconfundível.

Era o ministério que para eles começava...

Quarenta dias depois dos terríveis acontecimentos, Ele apareceu à Sua Mãe e aos Onze, que estavam em Jerusalém, e levou-os até Betânia. Todos O seguiram ansiosos, felizes, como nos dias idos...

Não era, porém, a jornada, como outrora. Entre eles havia felicidade e também temor. A felicidade do reencontro e o temor da fraqueza de que deram mostras.

Chegando ao cume da montanha, com a cidade resplandecente aos seus pés, os companheiros perguntaram:

“Senhor, restaurarás Tu, neste tempo, o reino a Israel?”.

O Mestre olhou-os com aquela tristeza do passado. Os amigos ainda não compreendiam qual era o Seu Reino, reino sem dimensão geográfica nem política, a perder-se nas galáxias do firmamento...

Respondeu-lhes com o acento de excelsa compreensão:

“- Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder”.

E ante a muda interrogação de todos, acrescentou:

“- Recebereis as virtudes do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas em Jerusalém como em toda a Judéia, Samaria, até aos confins da Terra”.

Todos estavam com os olhos fitos n`Ele e, só então, perceberam que Ele ascendia lentamente, as mãos voltadas para eles num gesto de afago, as vestes luminosas, até desaparecer nas alturas...

Depois de lutas tiranizantes consigo mesma, experimentou a soledade e o abandono, quando todos se foram a pregar e viver a Mensagem.

Estando a sós, a pervagar pelas praias longas que O recordavam, encontrou leprosos que vinham de longe buscar socorro nas mãos d`Ele e, como chegassem tarde, abraçou-os como irmãos e partiu para o vale dos imundos, cantando salmodias de felicidade.

*

Rediviva desde quando O conhecera, ao morrer às portas da cidade de Éfeso, demandou a Vida nos braços de Jesus aquela cuja experiência e amor total ao Mestre são lições vivas, vencendo os séculos...


(Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicado no livro Primícias do Reino)