Amélia
Rodrigues
Com a força da
sua realidade poderia ser considerado um díptico: as bênçãos de Deus no monte e
os conflitos do homem em toda a pujança de suas cores na planície.
Desciam Jesus,
Pedro, Tiago e João das culminâncias do Tabor, onde comungaram com as
excelências de Deus, ao encontro das baixadas espirituais das criaturas.
Há pouco,
resplandecente, o Mestre estivera envolto por uma esfera de poderosa luz e
dialogara com os venerandos antepassados do povo: Moisés e Elias.
As emoções
ainda não se aquietaram na horizontalidade do habitual, e a curva descendente
das dores tomava forma chocante no terra a terra das contingências humanas.
No alto, a
visão da vida verdadeira; ao sopé, as angústias junto aos sofrimentos.
*
- “Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai dele e
não entre mais nele” – exortou Jesus com firmeza na voz, na qual a piedade se
misturava à energia.
Não houve
debate. Tudo simples. A cena breve culminou no declínio do jovem que ficara
prostrado como morto, banhado por álgido suor, desfigurado.
O Mestre,
comovido, curvou-se, tocou a fronte do ex-obsidiado e o levantou com gesto
cativante.
Era quase um
menino...
Sofria desde a
mais tenra idade sob o jugo violento do impiedoso algoz desencarnado. As raízes
do ódio nefando se perdiam nas sombras do passado, quando foram comensais da
mesa farta da loucura e se enredaram em odienta cena de sangue... Agora a lei
soberana, que jungia o criminoso não punido à justiça desrespeitada,
manifestava-se sobranceira.
O parasito
espiritual se imanara ao sofredor e reproduzia nele os esgares epilépticos em
que se consumia, vítima de si mesmo, escravo do ódio. Na volúpia da vingança,
atirava-o de encontro ao solo, ateava-lhe fogo às vestes, tentava afoga-lo,
subjugava-o.
As esperanças
da família se apagavam na lâmpada sem lume das tentativas de cura, impossível
até aquele momento.
Seu pai ouvira
falar do Rabi e o trouxera, na expectativa duvidosa de ver o filho recuperado,
perdido como se encontrava no caminho do aniquilamento inexorável.
*
- Transcorreram oito dias após a “confissão de Pedro”,
o Mestre tomou consigo Pedro, Tiago e João, e levou-os sozinhos, e à parte,
para um alto monte.
Agosto, em
plenitude, derrama sua taça de luz e calor sobre a terra. As papoulas e as
margaridas jazem crestadas em hastes vencidas pela canícula. O céu muito azul e
transparente concede visão infinita em todas as direções.
À medida que o
Tabor vai sendo vencido, os painéis se desenrolam: embaixo os campos de trigo
ceifado, a mancha pardacento-prateada do Jordão, na configuração de imenso
alaúde entre sebes; para as bandas do oriente erguem-se altaneiros os montes
Galaad e ao poente cintilam as águas do Mediterrâneo, como imenso espelho
refletindo através da garganta natural entre o Monte Carmelo e os contrafortes
altanados do Líbano; ao norte o Genesaré salpicado de velas coloridas e orlado
por Tiberíades, Magdala, Cafarnaum, Betsaida, as cidades tão encantadoramente
derramadas dos pequenos cerros na direção da praias, vestidas de palmeiras
verdejantes...
Do acúmen a
visão não se detém. De forma arredondada, a plataforma batida pelos ventos, às
vezes coroada de zimbros, é a culminância dos 562 metros de altitude rochosa,
sem vegetação, com destaque na imensa e formosa Galileia.
A noite ainda
demora algumas horas para estender o seu manto imenso sob o céu. Os meses de agosto
são de longos dias. O calor asfixia e requeima a rala vegetação.
A jornada é
longa, na conquista do monte: mais de quatro horas de marcha lenta e cansativa,
embora a beleza da paisagem deslumbrante em derredor.
Atingindo o
acume, o Mestre se põe em oração. Os discípulos, suarentos e cansados,
adormecem à sombra dos arbustos escassos.
Um grande
silêncio envolve tudo e todos. O mormaço quase asfixia...
A noite vence
a natureza e o Mestre ora.
A madrugada
alcança o Rabi em oração. Os companheiros dormem. Vozes percutem na monotonia.
Os discípulos despertam, assustados e são dominados pela visão sublime da
transfiguração do Mestre, com as vestes incendidas, dialogando com Moisés e
Elias. As palavras vibram no ar; mas não são palavras como as que se ouvem
comumente...
Logo após,
diluída a visão, Simão se acerca do Rabi e exclama:
- Mestre, bom é que estejamos aqui, e façamos três
cabanas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.
O Mestre
fita-o compadecido.
Uma nuvem
surge misteriosa e uma voz, então, exclama:
- Este é o meu filho amado; a Ele ouvi!
Os discípulos
ainda não refeitos são tomados de pavor.
A grandiosa
revelação fora feita.
Jesus estivera
em toda a sua glória e eles foram testemunhas silenciosas e emocionadas do
acontecimento incomparável.
Os Céus foram
cindidos e os discípulos tiveram o “conhecimento do Divino”.
Pedro se
reportará mais tarde a essa metamorfose do Mestre, testemunho insofismável em
que fundamenta sua fé.
O Rabi, no
entanto, exige-lhes silêncio.
A verdade tem
que ser dosada para o entendimento da argila humana.
Mais tarde
João, ao escrever os “ditos do Senhor”, iniciará a sua narrativa evocando,
certamente, a cena inesquecível: “Nele estava a vida, e a vida era luz dos
homens; a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”.
*
- Descemos! – alvitra o Mestre.
- Não poderíamos aqui demorar-nos? – indaga Simão.
- É necessário descer – retruca Jesus. – Busquemos os
que não dispõe de forças para subir. Os homens necessitam de nós. A nossa é a glória
deles. Para eles sejam nossas alegrias e para nós as suas dores. Depois da
comunhão com os Céus, a convivência entre os que demoram na Terra. O paraíso
seria para nós estranho presídio sem aqueles que, no ergástulo das aflições,
anseiam pelo país da liberdade. Desçamos. Os homens, para quem eu venho, nos
esperam.
*
Na descida do
monte confabulam:
- Rabi! – indagam como receosos – dizem os escribas
que é mister que venha primeiro Elias...
- Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe
tudo quanto quiseram. Assim farão, também, padecer o Filho do Homem...
“Então
entenderam os discípulos que lhes falara de João Batista.”
A nova
revelação de ser Elias, João Batista renascido, surpreende os companheiros que
começam a compreender os inescrutáveis desígnios do Pai.
Os Espíritos
estão estuantes de felicidade. Há festa em seus corações.
*
Jesus e os
discípulos continuam descendo.
O dia
esplende. Os acontecimentos são sóis em suas almas.
A plataforma
do Tabor fica para trás.
A planície
imensa se estende embaixo.
Lá estão as
criaturas sofredoras e ansiosas, os companheiros aguardando.
Amedrontados,
os discípulos se revezam.
- Afasta-te, Satanás! – exclama Judas, irado,
enquanto o obsesso ulula.
- Filho da trevas, semente de Belzebu – brada Tadeu,
com a voz rouca e os olhos injetados – por quem és, abandona tua vítima!
- Decaído, imundo – vocifera, pálido e suarento,
Natanael – eu te exorto a que retornes às geenas!...
Curiosos se
acercam dos gritadores, enquanto o endemoninhado, como se multiplicasse as
forças que o vampirismo espiritual consome, mais se debate no solo e corcoveia,
exasperado, a ameaçar o débil corpo em convulsão, semivencido.
É o próprio Dibbuk
– soluça, desanimado, Felipe.
- Nada conseguiremos!1 – arremata o filho de
Cléofas.
- Onde andará o Mestre – indaga perturbado, Simão, o
zelote – que não vem socorrer-nos? Não saberá Ele de nossa aflição?...
Entreolham-se,
estremecem, enquanto o obsidiado espumeja e se debate.
Falam todos de
uma vez. Gritam inutilmente.
Vendo o Mestre
e os companheiros, que chegam à charneca das misérias humanas, correm, aflitos
e O saúdam.
- Que é que discutis com eles? – interroga, sereno,
o Senhor.
- Mestre, trouxe-te o meu filho, que tem um Espírito
mudo. E este, onde quer que o apanhe, despedaça-o, e ele espuma, e range os
dentes, e vai-se secando; eu disse aos teus discípulos que expulsassem, e não
puderam!
- Se podes – apela o pai – salva o meu filho.
- Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê.
- Eu creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade.
O Rabi se
comove. O semblante sereno expressa toda a angústia do seu Espírito.
Sem qualquer
mágoa, fita os companheiros medrosos e os admoesta com veemência e compaixão.
Compreende as fraquezas dos convidados a esparzir a semente da boa-nova.
Como a
justificar-se a si mesmo e aos outros, Judas tenta esclarecer:
- Fizemos tudo quanto nos ensinaste e nada
conseguimos...
- Até quando vos sofrerei e estarei convosco?
A indagação
fica no ar, sem resposta.
A arrogância
da fraqueza é mais petulante do que a vaidade da força.
O sinal do
fracasso no orgulho é como chaga de fogo a requeimar.
- Espírito mudo e surdo...
Pálido e
fraco, o moço sorriu. Avia gratidão sem palavras. Osculou a mão do Rabi e,
conduzido pelo pai em êxtase de alegria, seguiram ambos no rumo do lar.
*
À noite,
quando o zimbório se vestia de estrelas brilhantes, ainda sob o impacto das
manifestações do Mestre, no Tabor e na planície, Simão, traduzindo
possivelmente a visível inquietação dos companheiros, aproximou-se d’Ele, que
meditava, e indagou, visivelmente emocionado:
- Por que não puderam eles expulsar o espírito
imundo?
- Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não
ser com oração e jejum – elucido o Amigo.
Desejando, no
entanto, utilizar o momento para melhor instruir os companheiros desatentos e
pretensiosos, o Senhor esclareceu:
- Antes de tudo é necessário compreendamos que os
espíritos imundos viveram antes, homens que foram, homens que continuam sendo.
Enganados, como se deixaram conduzir no corpo, prosseguem enlouquecidos, fora
dele. A morte não os transformou. Viajores do tempo, são o que fizeram. Ligados
mentalmente às reminiscências das ações, demoram-se, sofrendo-as, imanados aos
que amaram, vinculados àqueles que os fizeram sofrer...
Fez uma pausa,
espontânea. E prosseguiu:
- Por essa razão a Boa-nova é um hino de amor e
perdão. Amor indistinto e perdão indiscriminado.
Diante deles,
nossos irmãos na sombra da ignorância, nenhuma força possui força senão a força
do amor. Não apenas expulsá-los daquele convívio a que se agregam
parasitariamente, mas também socorrê-los, enlaçando-os com amor...
Novamente
silenciou, e envolveu os amigos num olhar de bondade, para logo continuar:
- São nossos irmãos da retaguarda, perdidos na
ilusão das carnes a que teimosamente pretendem continuar ligados. Não se
prepararam para a verdade. É em razão disso que a Mensagem de Vida não se
reveste das indumentárias fantasiosas tão do agrado geral. É semente de luz
para fecundação no solo do espírito.
Diante, pois,
deles – possessos e possessores – só a oração do amor infatigável e o jejum das
paixões conseguem mitigar a sede em que se entredevoram, entregando-os aos
trabalhadores da Obra de Nosso Pai, que, em toda parte, estão cooperando com o
Amor, incessantemente.
Se amardes ao
invés de detestardes, se desejares socorrer e não apenas os expulsardes, tudo
fareis, pois que tudo quanto eu faço podeis fazê-lo, e muito mais, se o
quiserdes...
No leve ar da
noite bailavam suaves brisas espraiando para o futuro a palavra do Rabi, como
antevisão gloriosa para os dias porvindouros da Humanidade.
Psicografia de
Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicada no livro “Primícias
do Reino”