Amélia Rodrigues
O mar era grande espelho levemente ondulado, a
refletir a poeira de luz do Sol nascente, dardejando ouro. O mês de Kislev,
portador das tempestades, é também o mensageiro da fartura, carreador dos
ventos perfumados e leves.
Correm suaves ruídos pelos arredores e a penedia
triste de Gergesa ou Gerasa fica para trás.
As encostas negras e viciosos, surradas pelas
virações marinhas, apresentam-se lúgubres, sem vegetação alguma. Dir-se-ia um
solo ingrato onde nada medra, à exceção de espinheiros e cardos silvestres.
No alto, um magote de homens, mulheres e crianças
alonga os olhos sobre a face líquida do mar, preciosa concessão do Jordão ao
longo do seu abençoado curso, interroga sem palavras.
O barco desliza suavemente, quase em silêncio, com a
grande vela enfunada, à semelhança de uma asa móvel sombreando as águas.
Na popa, a figura de jesus assemelha-se a uma
exclamação de dor. Fitando a terra agreste e nua, sente o sofrimento da gente
que ali habita.
Programara, desde antes, aquela visita às terras sobre
as montanhas de Bazan, na Decápole, uma vez que acalentava a possibilidade de
até ali levar a mensagem da ao-nova.
Proclamar e difundir as primícias do Reino
constituía Sua ventura, pois que para isso viera. Viver com o povo, sofrer as
aflições do povo, mas, sobretudo, esclarecer e libertar o espírito do povo das
grilheiras vigorosas da ignorância e da superstição.
O povo era o seu rebanho. Para esse rebanho viera
dar a vida. Era, todavia, necessário que as ovelhas conhecessem o pastor a fim
de poder identificar-Lhe a voz, obedecer-Lhe ao chamado. Experimentava, porém,
ultriz sofrimento porque o povo não O compreendia: o sofrimento que decorre do
amor desdenhado.
Gerasa não O recebera, embora o tom festivo com que
anunciara a chegada e a oferenda preciosa que doara ao acercar-se dos seus
limites.
Não quebrara os liames que atavam o obsidiado à
obsessão, como um raio alvinitente penetra o corpo da noite e anuncia a força
da sua presença?
Os gerasenos comerciavam com porcos e preferiam os
suínos a Ele, o Amigo que desejavam ignorar...
Vento sinfônico encrespa as águas, melodias vibram
na tristeza que envolve o barco e açoita os cabelos bastos dos homens
extremunhados e silenciosos.
Gerasa os sulcara com uma grande dor...
Alguém perguntou, na pequena planura do penhasco, fitando
o barco a mergulhar na distância:
- Quem era?
- Não sabemos – respondeu outro.
- Por que nos queria falar? Trazia-nos algo?
- Não indagamos, nem mesmo o deixamos falar.
- Que desejaria conosco?
- Não podemos atinar. Talvez tenha sido melhor
expulsá-lo de nossos sítios, como fizemos.
- Talvez!...
E como se voltassem a contemplar a embarcação, que
poderia ser considerada como um ponto final numa lição em meio, uma mulher sugeriu:
- Parecia-se com um Rabi, desses que andam pela
Galileia...
- Que nos pode oferecer de bom a Galileia? – revidou,
rabioso, um representante da cidade. – O que podemos afirmar são os prejuízos
que Ele nos deu.
- E onde se encontra o endemoninhado? – inquiriu outrem.
- Busquemo-lo! – exclamou, encolerizado, um jovem. –
Façamo-lo confessar. Afinal, ele é portador de Espíritos imundos e com ele
podemos ser rigorosos.
- Tenhamos cuidado – advertiu um comerciante de
porcos. Os danos do dia são vultuosos; perdemos nossas melhores varas e isto
vai afetar a economia de nossa cidade. O doente parece recuperado.
Deixemo-lo...
O barco era um quase nada no mar.
O dia bordava a terra de luz e a natureza estuava
prenhe de festa. Mil vozes onomatopaicas entoavam um canto de alegria.
Dos penhascos de Gerasa avistava-se o outro lado do
mar.
Os gerasenos voltaram à cidade, a dois quilômetros
dali, onde se erguia o casario de arquitetura grega, cercado de ricas pastagens
a se perderem na borda do deserto.
Jesus e os discípulos retornaram a Cafarnaum.
Tudo fora muito simples, recordava.
A alva ainda não descerrara os mantos pesados do seu
rosto de luz, quando ele ouvira rumor de passos, no pavor em que vivia.
Erguera-se de um túmulo vazio, dos muitos existentes
nas cavernas esburacadas da rocha, entre os outeiros usados como criptas
sepulcrais.
Subitamente sentira a força das fúrias, que o
dominavam em hedionda e nefasta subjugação.
Podia formular uma ideia do que fizera, pelas
equimoses e hematomas pelo corpo dorido e os membros lassos, o gosto de sangue
na boca e o imenso cansaço que o possuía...
Quanto havia descido! – meditava. – Os jogos do
prazer nos antros de perdição levaram-no àquele estado. Atormentado por forças
subjugadoras, abandonara o lar e os parentes, colocara nos lábios dos pais a
taça de fel de amarguras inomináveis, a ponto de fazê-los sucumbir de vergonha
e horror nos dédalos dos sofrimentos.
Começara a cair muito cedo até chafurdar entre os
porcos e buscar as sombras das sepulturas, onde se refugiavam os
endemoninhados, carregando nos pulsos e nos tornozelos pedaços de cordas
imundas e um elo de ferro, como os que atavam os animais ferozes...
Recordando, agora, as torpezas e sofrimentos, não
podia evitar as lágrimas que vertia em abundância.
Vagara pelos bosques próximos, disputando com os
animais restos alimentícios; ou, desvairado, passara dias intermináveis em
indescritíveis pelejas, na luta contra animais selvagens que o aniquilavam...
Concatenando os pensamentos, lembrava-se somente da
aragem fresca que o envolvera, e daqueles dois olhos tranquilos e bons que o
banharam de amena harmonia.
- Senhor!... – balbuciara, nervoso, enfraquecido,
empapado de suor – Que queres que eu faça?
- Torna para tua casa, e conta quão grandes coisas te
fez Deus.
- Não tenho ninguém – retrucara. – Os meus me odeiam
pelo muito que os fiz sofrer. Deixa-me seguir contigo, que te apiedaste de mim.
- Não, por enquanto, não! Vai primeiro anunciar o
que recebeste, para que todos saibam o que pode fazer o Filho do Homem.
Erguera-se de um salto e saíra a correr, seguindo de
perto pelos proprietários dos porcos que haviam despenhado no abismo. Ignorava,
porém, como as coisas haviam-se passado.
Estava livre. Isto sim: em liberdade! Gritava,
explodia de felicidade. E sorria.
Os outros o fitavam a medo e o escutavam sem nele
crer, embora a sanidade de que dava mostras.
Legião, assim era chamado tendo-se em vista os
espíritos imundos que o dominavam, era temido e detestado.
Foram, porém, inúteis as suas explicações, o
atestado eloquente do seu juízo em equilíbrio. E quando Ele se acercou da porta
da cidade, receberam-no sem consideração, nem respeito, expulsando-o em
seguida.
Nos dias que se seguiram, ele anunciou, por onde
esteve, a promessa do Filho do Homem.
Os gerasenos, porém, revoltados por não terem fruído
a presença e as dádivas d’Ele, agasalharam no imo, contra o ex-endemoninhado,
surdo despeito, que não tardou a explodir em cólera generalizada.
- Desde que Ele te curou – foram peremptórios – e vale
tanto para ti, mais do que nós, vai-te para o seu lado, deixa-nos a nós e as
nossas terras.
O ódio popular é como furacão sem rota, que traga na
sua voragem o que encontra.
- Vai-te! – gritaram as vozes, - esquece-te de nós.
Uma pedra cortou o ar, bagas de sangue quente
tingiram o chão e o pó fez-se lama na terra.
Os olhos do recém-curado se injetaram, a boca
retorceu-se em estranho ríctus e ele exclamou:
- Maldita sejas, Gerasa, que expulsas os filhos e
desprezas os Enviados!
Aquela voz trovejou poderosa e a cidade presente à
cena de vergonha e dor não mais esqueceria as visões daqueles dias, as
expressões dos dois homens aos quais fechava suas portas.
Depois de caminhar pelas terras da Decápole,
narrando o que lhe fizera o Galileu, ele demandou às praias do outro lado do
mar e perdeu-se na multidão que acompanhava as pregações no lago e nas cidades,
nos montes e na orla das estradas, oferecendo suas mãos e seus braços aos aflitos
e combalidos que necessitassem de ajuda.
Não mais se afastaria dos sofredores, seus irmãos de
infortúnio.
Procurava dar-lhes a fortuna da esperança como ele
mesmo a recebera do Rabi.
Seguia-O, deslumbrado e reconhecido pelo que
recebera e passou a amar como fora amado, trabalhando, também, pela extensão do
Reino de Deus que Ele anunciava.
(Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito
Amélia Rodrigues, publicada no livro “Primícias do Reino”)
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