quinta-feira, 24 de março de 2016

O OBSIDIADO GERASENO

 Amélia Rodrigues

O mar era grande espelho levemente ondulado, a refletir a poeira de luz do Sol nascente, dardejando ouro. O mês de Kislev, portador das tempestades, é também o mensageiro da fartura, carreador dos ventos perfumados e leves.

Correm suaves ruídos pelos arredores e a penedia triste de Gergesa ou Gerasa fica para trás.

As encostas negras e viciosos, surradas pelas virações marinhas, apresentam-se lúgubres, sem vegetação alguma. Dir-se-ia um solo ingrato onde nada medra, à exceção de espinheiros e cardos silvestres.

No alto, um magote de homens, mulheres e crianças alonga os olhos sobre a face líquida do mar, preciosa concessão do Jordão ao longo do seu abençoado curso, interroga sem palavras.

O barco desliza suavemente, quase em silêncio, com a grande vela enfunada, à semelhança de uma asa móvel sombreando as águas.

Na popa, a figura de jesus assemelha-se a uma exclamação de dor. Fitando a terra agreste e nua, sente o sofrimento da gente que ali habita.

Programara, desde antes, aquela visita às terras sobre as montanhas de Bazan, na Decápole, uma vez que acalentava a possibilidade de até ali levar a mensagem da ao-nova.

Proclamar e difundir as primícias do Reino constituía Sua ventura, pois que para isso viera. Viver com o povo, sofrer as aflições do povo, mas, sobretudo, esclarecer e libertar o espírito do povo das grilheiras vigorosas da ignorância e da superstição.

O povo era o seu rebanho. Para esse rebanho viera dar a vida. Era, todavia, necessário que as ovelhas conhecessem o pastor a fim de poder identificar-Lhe a voz, obedecer-Lhe ao chamado. Experimentava, porém, ultriz sofrimento porque o povo não O compreendia: o sofrimento que decorre do amor desdenhado.

Gerasa não O recebera, embora o tom festivo com que anunciara a chegada e a oferenda preciosa que doara ao acercar-se dos seus limites.

Não quebrara os liames que atavam o obsidiado à obsessão, como um raio alvinitente penetra o corpo da noite e anuncia a força da sua presença?

Os gerasenos comerciavam com porcos e preferiam os suínos a Ele, o Amigo que desejavam ignorar...

Vento sinfônico encrespa as águas, melodias vibram na tristeza que envolve o barco e açoita os cabelos bastos dos homens extremunhados e silenciosos.

Gerasa os sulcara com uma grande dor...

Alguém perguntou, na pequena planura do penhasco, fitando o barco a mergulhar na distância:

- Quem era?
- Não sabemos – respondeu outro.
- Por que nos queria falar? Trazia-nos algo?
- Não indagamos, nem mesmo o deixamos falar.
- Que desejaria conosco?
- Não podemos atinar. Talvez tenha sido melhor expulsá-lo de nossos sítios, como fizemos.
- Talvez!...

E como se voltassem a contemplar a embarcação, que poderia ser considerada como um ponto final numa lição em meio, uma mulher sugeriu:

- Parecia-se com um Rabi, desses que andam pela Galileia...

- Que nos pode oferecer de bom a Galileia? – revidou, rabioso, um representante da cidade. – O que podemos afirmar são os prejuízos que Ele nos deu.

- E onde se encontra o endemoninhado? – inquiriu outrem.

- Busquemo-lo! – exclamou, encolerizado, um jovem. – Façamo-lo confessar. Afinal, ele é portador de Espíritos imundos e com ele podemos ser rigorosos.

- Tenhamos cuidado – advertiu um comerciante de porcos. Os danos do dia são vultuosos; perdemos nossas melhores varas e isto vai afetar a economia de nossa cidade. O doente parece recuperado. Deixemo-lo...

O barco era um quase nada no mar.

O dia bordava a terra de luz e a natureza estuava prenhe de festa. Mil vozes onomatopaicas entoavam um canto de alegria.

Dos penhascos de Gerasa avistava-se o outro lado do mar.

Os gerasenos voltaram à cidade, a dois quilômetros dali, onde se erguia o casario de arquitetura grega, cercado de ricas pastagens a se perderem na borda do deserto.

Jesus e os discípulos retornaram a Cafarnaum.

Tudo fora muito simples, recordava.

A alva ainda não descerrara os mantos pesados do seu rosto de luz, quando ele ouvira rumor de passos, no pavor em que vivia.

Erguera-se de um túmulo vazio, dos muitos existentes nas cavernas esburacadas da rocha, entre os outeiros usados como criptas sepulcrais.

Subitamente sentira a força das fúrias, que o dominavam em hedionda e nefasta subjugação.

Podia formular uma ideia do que fizera, pelas equimoses e hematomas pelo corpo dorido e os membros lassos, o gosto de sangue na boca e o imenso cansaço que o possuía...

Quanto havia descido! – meditava. – Os jogos do prazer nos antros de perdição levaram-no àquele estado. Atormentado por forças subjugadoras, abandonara o lar e os parentes, colocara nos lábios dos pais a taça de fel de amarguras inomináveis, a ponto de fazê-los sucumbir de vergonha e horror nos dédalos dos sofrimentos.

Começara a cair muito cedo até chafurdar entre os porcos e buscar as sombras das sepulturas, onde se refugiavam os endemoninhados, carregando nos pulsos e nos tornozelos pedaços de cordas imundas e um elo de ferro, como os que atavam os animais ferozes...

Recordando, agora, as torpezas e sofrimentos, não podia evitar as lágrimas que vertia em abundância.

Vagara pelos bosques próximos, disputando com os animais restos alimentícios; ou, desvairado, passara dias intermináveis em indescritíveis pelejas, na luta contra animais selvagens que o aniquilavam...

Concatenando os pensamentos, lembrava-se somente da aragem fresca que o envolvera, e daqueles dois olhos tranquilos e bons que o banharam de amena harmonia.

- Senhor!... – balbuciara, nervoso, enfraquecido, empapado de suor – Que queres que eu faça?

- Torna para tua casa, e conta quão grandes coisas te fez Deus.

- Não tenho ninguém – retrucara. – Os meus me odeiam pelo muito que os fiz sofrer. Deixa-me seguir contigo, que te apiedaste de mim.

- Não, por enquanto, não! Vai primeiro anunciar o que recebeste, para que todos saibam o que pode fazer o Filho do Homem.

Erguera-se de um salto e saíra a correr, seguindo de perto pelos proprietários dos porcos que haviam despenhado no abismo. Ignorava, porém, como as coisas haviam-se passado.

Estava livre. Isto sim: em liberdade! Gritava, explodia de felicidade. E sorria.

Os outros o fitavam a medo e o escutavam sem nele crer, embora a sanidade de que dava mostras.

Legião, assim era chamado tendo-se em vista os espíritos imundos que o dominavam, era temido e detestado.

Foram, porém, inúteis as suas explicações, o atestado eloquente do seu juízo em equilíbrio. E quando Ele se acercou da porta da cidade, receberam-no sem consideração, nem respeito, expulsando-o em seguida.

Nos dias que se seguiram, ele anunciou, por onde esteve, a promessa do Filho do Homem.

Os gerasenos, porém, revoltados por não terem fruído a presença e as dádivas d’Ele, agasalharam no imo, contra o ex-endemoninhado, surdo despeito, que não tardou a explodir em cólera generalizada.

- Desde que Ele te curou – foram peremptórios – e vale tanto para ti, mais do que nós, vai-te para o seu lado, deixa-nos a nós e as nossas terras.

O ódio popular é como furacão sem rota, que traga na sua voragem o que encontra.

- Vai-te! – gritaram as vozes, - esquece-te de nós.

Uma pedra cortou o ar, bagas de sangue quente tingiram o chão e o pó fez-se lama na terra.

Os olhos do recém-curado se injetaram, a boca retorceu-se em estranho ríctus e ele exclamou:

- Maldita sejas, Gerasa, que expulsas os filhos e desprezas os Enviados!

Aquela voz trovejou poderosa e a cidade presente à cena de vergonha e dor não mais esqueceria as visões daqueles dias, as expressões dos dois homens aos quais fechava suas portas.

Depois de caminhar pelas terras da Decápole, narrando o que lhe fizera o Galileu, ele demandou às praias do outro lado do mar e perdeu-se na multidão que acompanhava as pregações no lago e nas cidades, nos montes e na orla das estradas, oferecendo suas mãos e seus braços aos aflitos e combalidos que necessitassem de ajuda.

Não mais se afastaria dos sofredores, seus irmãos de infortúnio.

Procurava dar-lhes a fortuna da esperança como ele mesmo a recebera do Rabi.

Seguia-O, deslumbrado e reconhecido pelo que recebera e passou a amar como fora amado, trabalhando, também, pela extensão do Reino de Deus que Ele anunciava.


(Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicada no livro “Primícias do Reino”)

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